Sujeitos em (inter)Ação: por uma Metafísica da Alteridade
Hadson José Gomes de Sousa (PPGLS/CAPES)[1]
Pretendemos tecer neste espaço uma crítica à concepção de relação e, consequentemente, de sujeito naturalizadas na cultural ocidental. Por isso antes de discorrer acerca da Metafísica da Alteridade, à luz do filósofo Emmanuel Lèvinas – nosso principal referencial – apresentaremos, brevemente, a ontologia (ou onto-teologia) existencial, do filósofo Heidegger, ponto de partida e fonte de refutação para o projeto filosófico levinasiano.
A ontologia é a essência de toda relação com os seres e até de toda relação no ser (LÈVINAS, 2004, p. 25). A ontologia heideggeriana, compreensão do ser – logos do ser, práxis da filosofia ocidental, retomada pela filosofia contemporânea, implica o conhecimento do ser num âmbito “generalizador”. Compreender o Ser transcende a teoria e, envolve todo comportamento humano.
A teorização do ser do ente pelo Ser cognoscente, implica a liberdade deste em relação àquele – outrem, que neste processo de conhecimento é destituído de sua alteridade. O homem inteiro é ontologia. Sua obra científica, sua vida afetiva, a satisfação de suas necessidades e seu trabalho, sua vida social e sua morte articulam, com um rigor que reserva a cada um destes momentos uma função determinada, a compreensão do ser ou a verdade (LÈVINAS, op. cit., p. 22). Eis a hermenêutica da realidade ontológica galgada por Heidegger em sua obra prima: Ser e Tempo, a intelecção existencial do ser humano, a idéia de ser-no-mundo, Dasein, com todas as suas implicações.
Lèvinas reflete que essa compreensão corrobora o esquecimento do ser e, dela deriva nossa civilização. Ele arremete, repugnando a captação e redução do ente (outrem) ao ser do ente, traduzido pela sua verdade; diz que a verdade existe não porque o ser existe. Todavia, devido à abertura idiossincrática e inerente do ser é que se dá a verdade. Ontologicamente, o ser é apreendido pela compreensão.
Filosofia do poder, a ontologia, como filosofia primeira que não põe em questão o Mesmo, é uma filosofia da injustiça. A ontologia heideggeriana que subordina a relação com outrem à relação com o ser em geral – ainda que se oponha à paixão técnica, saída do esquecimento do ser escondido pelo ente – mantém-se na obediência do anônimo e leva fatalmente a um outro poder, à dominação imperialista, à tirania (LÈVINAS,1988, p. 34).
A ideia de Metafísica da totalidade em Heidegger advém do pensamento que estruturou e estrutura, desde Platão, a filosofia ocidental. Dowell (2006) analisa a ideia heideggeriana de Metafísica a partir de três componentes que a caracterizam. Primeiro apresenta o dualismo platônico estabelecido entre o mundo sensível e o inteligível; depois a determinação do ser do ente pelo sujeito, que julga a verdade daquele, pois este transcende o ente numa relação de captação/redução do ente pelo ser do ente. Por último ele apresenta o caráter onto-teológico do pensar metafísico heideggeriano, que apesar de se dar numa relação de diferenciação, entre o ser e o ente, reduz o ser do ente ao Mesmo, unidade do ente primeiro. Objetiva-se com isso uma supremacia do ente comparando-o com um Deus cristão; desembocando numa relação assimétrica, entre o ente e o ser do ente (que perde sua altura). Destarte, Heidegger objetiva a superação da Metafísica. O fim da Metafísica, para ele, significa entender a essência do mundo moderno, onde o Ser foi deixado de lado em detrimento dos questionamentos acerca do Ser.
Ramos (2008) comenta que Heidegger, na tentativa
De resgatar o Ser esquecido, desde sua especial perspectiva, parte da idéia de que as filosofias anteriores a ele, principalmente desde a modernidade alemã, esqueceram o Ser e fizeram um reiteramento da questão, interrogação pelo ser, desde os gregos. […] acerca da qual é necessário evitar, partir de uma concepção geral destes, o que indica, ainda, na introdução de Tempo e ser, “onde a questão torna-se ainda mais digna de ser colocada e mais estranha ao espírito do tempo” (HEIDEGGER, 1996a, pp. 249-301); e, também, simplesmente, da idéia de ser corrente na filosofia do início do século passado (p. 69) (Grifos do autor).
Este mesmo autor esclarece que há aí um recobrimento, encobrimento, um velamento, um ocultamento do Ser, daí a extrema urgência e necessária desconstrução da ontologia, das interpretações do Ser no sentido e na direção da eliminação da máscara que encobre o verdadeiro rosto do Ser (RAMOS, op. cit., pp. 66-70).
Com veemência, Lèvinas refuta a ontologia e almeja a Metafísica da Alteridade. A Metafísica na ótica levinasiana concebe a alteridade de outrem desvinculada de qualquer tentativa de intelecção ou imperialismo do Mesmo. Por este viés, ela é anterior a qualquer ação do Eu. Contudo, é na relação do Eu com o Outro, o absolutamente Outro, em que ambos estão separados e impossibilitados de possuir ou objetivar um ao outro, que a exterioridade (distância) se apresenta. Esta relação é estabelecida por meio da linguagem e cada um permanece em si, separado, distante, porém frente a frente.
A linguagem desempenha de facto uma relação de tal maneira que os termos não são limítrofes nessa relação, que o Outro, apesar da relação com o Mesmo, permanece transcendente ao Mesmo. A relação do Mesmo com o Outro – ou metafísica – processa-se originalmente como discurso em que o Mesmo, recolhido na sua ipseidade de “eu” – de ente particular único e autóctone – sai de si (LÈVINAS, 1988, p. 27) (Grifo do autor).
Lèvinas (op. cit.) evidencia a não possibilidade de reversibilidade na relação com a exterioridade de outrem, visto que regressaria ao Mesmo aniquilando, dessa forma, a alteridade radical do Outro. O poder do eu não percorrerá a distância indicada pela alteridade do outro (p. 26).
Diante dessa perspectiva,
O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que não é simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma alteridade que constitui o próprio conteúdo do Outro; outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo (LÈVINAS, op. cit. p. 26).
Lèvinas, entrevendo a possibilidade de relação fora da totalidade, ratifica que o movimento metafísico é transcendente. Esta transcendência implica o distanciamento do Mesmo por si, do Outro – separação. A ideia de separação em Lèvinas ocasiona a ruptura da totalidade. Isto demanda A exterioridade absoluta do termo metafísica (…) (1988, p. 23). Portanto, o filósofo judeu-lituano rompe com a totalização do Ser e irrompe uma exterioridade absoluta – adentra a maneira de existir do Outro sem, entretanto, totalizar o metafísico e o Alter. Enfim, o metafísico, embora absolutamente separado, mantém uma relação de exterioridade com o Outro.
Assim, reitera a impossibilidade do Outro ser reduzido ao Mesmo num movimento reversível:
O metafísico e o Outro não constituem uma qualquer correlação que seria reversível. A reversibilidade de uma relação em que os termos se lêem indiferentemente da esquerda para a direita e da direita para a esquerda ligá-los-ia um ao outro. Completar-se-iam num sistema, visível de fora. A transcendência pretendida fundir-se-ia assim na unidade do sistema que destruiria a alteridade radical do Outro (LÈVINAS, op. cit., p. 23) (grifo do autor).
Para ele, todavia, a distância que separa o eu de Outrem seria preenchida se ambos fossem enquadrados num escopo comum. A alteridade só é possível a partir de mim – na interrelação.
Sujeitos em construção: momentos de identificação
Diante dessa discussão, neste ponto do texto, somaremos nossa voz – carregada da voz do filósofo Emmanuel Lèvinas com sua filosofia da alteridade, à voz de Geraldi, por sua vez, imbuída pela voz de Mikhail Bakhtin cujo pensamento tem como fulcro a alteridade, também. Para os autores, a alteridade se instaura na relação com um Eu, em que ambos permanecem separados. Um não engloba o outro, porém é na relação, dialogia para Bakhtin e Metafísica para Lèvinas, que ambos surgem como seres únicos no evento da interação.
Então, é na abertura para interação constante com a alteridade que ganhamos identidade. Sem a relação com outrem nos abstraímos e caímos nas amarras do Ser ensimesmado, fechado em si-mesmo; relação ontológica, de acordo com Lèvinas.
A relação ontológica é definida como o enaltecimento do Ser ou da sua identidade, em recusa de tudo o que é diferente. O Ser, considerado o cerne da relação, engloba em sua totalidade o Outro, o Estranho, objetivando compreendê-lo e emoldurá-lo a partir de suas necessidades (do Ser/Eu). Embora o Eu careça de uma imagem, uma exterioridade do Outro. Contudo, é uma objetivação momentânea. Esvai-se logo depois… Pois,
O absolutamente Outro é outrem; não faz número comigo. A coletividade em que eu digo “tu” ou “nós” não é plural de “eu”. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum. Nem a posse, nem a unidade de número, nem a unidade de conceito me ligam a outrem. […] Sobre ele eu não posso poder, porquanto escapa ao meu domínio num aspecto essencial, mesmo que eu disponha dele: é que ele não está inteiramente no meu lugar. Mas eu, que não tenho conceito comum com o Estrangeiro, sou, tal como ele, sem género. Somos o Mesmo e o Outro. A conjunção e não indica aqui nem adição, nem poder de um termo sobre o outro (LÈVINAS, 1988, pp. 26-27) (Grifos do autor).
Na relação ontológica o Eu permanece o mesmo, idêntico. Em Lèvinas (apud COSTA 2000, p.135) A identidade não é uma relação inofensiva consigo mesmo, mas um estar acorrentado a si mesmo. Na metafísica da alteridade a relação se dá na diversidade, entre distintos; outrem é distinto e está “distante” de Mim e, isto instaura a exterioridade absoluta – transcendência. A alteridade é possibilitada a partir de Mim. Para que o Outro tenha alteridade se faz mister um Eu, destituído da impessoalidade do Ser em si.
Este encontro do Mesmo com o Outro, em que ambos permanecem separados (daí a distância) e impossibilitados de adequarem-se, constitui a Metafísica da Alteridade – movimento de transcendência. A ideia de infinito, vital na obra de Lèvinas, equivale à transcendência, exterioridade, metafísica, absolutamente Outro.
A exterioridade absoluta do termo metafísica, a irredutibilidade do movimento a um jogo interior, a uma simples presença de si a si, é pretendida, se não demonstrada, pela palavra transcendente. O movimento metafísico é transcendente e a transcendência, como desejo e inadequação, é necessariamente uma trans-ascendência. A transcendência pela qual o metafísico o designa tem isto de notável: a distância que exprime – diferentemente de toda a distância – entra na maneira de existir do ser exterior (LÈVINAS, 1988, p. 23) (Grifo do autor).
Numa discussão sobre o sujeito, tecendo sua contrapalavra a tantas outras concepções, Bakhtin nos apresenta um pensamento diferenciado, também, com relação à ideia de sujeito: o de “evento em processo do Ser”; o sujeito em “acontecimento” com suas marcas de regularidade e singularidade. O Ser, dessa forma, se constitui sem acabamentos como participante único no evento, na relação com a alteridade. Por conseguinte, agindo no evento, o Ser, devido o inacabamento, projeta uma “memória de futuro” – um “vir a ser”; distinto do “se é”, inalterável.
Bakhtin (apud GERALDI, 2010, p. 137) reflete que Se o Ser fosse algo determinado, acabado e petrificado com relação ao seu conteúdo, ele destruiria a multidão dos mundos pessoais unicamente válidos, mas é justamente esse Ser que produz pela primeira vez o evento unitário.
Geraldi (2010), em suas ancoragens no pensamento de Bakhtin, ratifica que Forçosamente somos agentivos: somente agindo somos o que somos (p. 140). Somos, por esse viés, na ação com/para o Outro, sempre incompletos, mas na ansiosa e incessante busca de completude, que jamais se completará. Nessa perspectiva, Geraldi (op. cit.) nos diz que (…) toda ação do sujeito é sempre uma resposta a uma compreensão de outra ação e que provocará, por seu turno, novamente uma resposta baseada numa compreensão que sobre ela for construída pelo outro (…) (p. 140). Essa dialogia se instaura no acontecimento que compartilha das mesmas especificidades.
Por fim, as identidades dos sujeitos não são construções definitivas, nem fixas, muito menos se confundem e nem buscam o idêntico; não se revelam pela repetição do mesmo. Mas, nossas identidades são múltiplas, estabilidades instáveis a que sempre regressamos (GERALDI, 2010, p. 112).
Pelo contrário, se ejetada a dinamicidade do “evento em processo de ser”, o acontecimento rechaçaria a possibilidade de agir e de viver. Pois,
Se eu mesmo sou um ser acabado e se o acontecimento é algo acabado, não posso nem viver nem agir: para viver, devo estar inacabado, aberto para mim mesmo – pelo menos no que constitui o essencial da minha vida –, devo ser para mim mesmo um valor ainda por-vir, devo não coincidir com a minha própria atualidade (BAKHTIN apud GERALDI, 2010, p. 110).
O sujeito, na perspectiva de evento, na tradução de Geraldi, torna-se, portanto, um “sujeito respondente”. Torna-se, assim, pela ação, responsável pela compreensão de uma outra ação, a do Outro. Que, logo em seguida, dará margem para nova compreensão. Daí que o sujeito torna-se responsável por e pela compreensão, que se dá como resposta, na dialogicidade. A compreensão como resposta é abertura para o devir.
Portanto,
O “devir está problematizado e assim ficará para sempre” (…). Trata-se de pensar que a todo momento, a todo acontecimento, o futuro é repensado, refeito e deste lugar desterritorializado, sempre mutável, o sujeito se situa para analisar o presente vivido e, nos limites de suas condições e dos instrumentos disponíveis, construídos pela herança cultural e reconstruídos, modificados, abandonados, ou recriados pelo presente, uma das possibilidades de ação é selecionada (GERALDI, 2010, pp. 114-115) (Grifo do autor).
Referências
DOWELL, João Augusto Mac. A busca pelo sentido do ser. Ser e tempo: A desconstrução da metafísica. São Leopoldo. 2006, p. 12-22. Jul. 2006. Revista IHU On-line. Disponível em: <http:// http://www.unisinos.br/ihu>. Acesso em: 31 de agosto de 2011.
GERALDI, João Wanderley. Ancoragens – Estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. 176 p.
LÈVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino S. Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 2004.
LÈVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
RAMOS, João Batista Santiago. Excurso em torno do Rosto: Uma Metafísica da Alteridade ou uma Utopia do Humano In Filosofia, formação e educação: apontamentos e perspectivas / Maria dos Remédios de Brito, Damião Bezerra Oliveira, Jadson Fernando Garcia Gonçalves (Orgs.) – Belém: EDUFPA, 2008 – p. 69-79.
[1] Discente do programa de pós-graduação (Strictu senso) – Linguagens e Saberes da Amazônia – UFPA/Bragança; Esp. em Ensino-aprendizagem de Língua e Literaturas – UFPA/Capanema; Graduado em Letras (Língua Portuguesa) – UFPA/Capanema; hadsonsousa@hotmail.com.
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